A
criança subnutrida largou seu baseado no chão, estupefata. Jamais
havia pensado que sentiria medo quando precisasse agir, mas suas
pernas tremiam enquanto colocava sua UZI israelense no chão e (para
desespero do estatuto da criança e do adolescente) acendia com um
fósforo o pavio do rojão. Certamente quando os chineses fabricaram
a pólvora em um feliz acidente misturando ao sabor da sorte nitrato
de potássio, enxofre e carvão não tinham expectativas de que ela
seria utilizada como ferramenta de alerta pelos traficantes do
Brasil. Três gramas de pólvora subiram aos céus causando um
poderoso estampido e colocando em estado de alerta todos os soldados
da favela.
O morro do gavião era uma
comunidade relativamente recente que se encontrava localizada na zona
leste da capital paulista. Vista de cima, a paisagem se tornava uma
imagem anacrônica dividida entre as humildes residências de um lado
e a classe media de outro. Havia três formas de entrar na
comunidade. A primeira e mais comum seria subir a ladeira onde
ficavam os comércios. A segunda seria pela rua que dava acesso a
avenida. A terceira era incomum e altamente perigosa: Entrar pela
mata fechada que flanqueava a favela pelo lado norte. Nesse momento
duas equipes da policia militar de São Paulo (compostas de seis
homens cada uma) chegaram ao fim da trilha na mata e avistaram o
fogueteiro disparando o rojão. O garoto de treze anos foi atingido
com três tiros de fuzil e morreu antes de tombar.
Na
outra entrada, pela avenida, outras duas equipes entraram em alta
velocidade e desembarcaram rapidamente assumindo formação de
combate. A essa altura os soldados do trafico estavam de prontidão e
esse seria o momento mais critico da operação. Houve uma intensa
troca de tiros enquanto os policiais avançavam. Esse tipo de
operação era extremamente delicado em decorrência da torrencial
presença de civis nas ruas. A todo o momento os policiais pediam que
os civis levantassem as camisas para verificar se portavam armas. Não
havia espaço para confiança ou ingenuidade.
Na
terceira entrada do morro do gavião, outra equipe de policiais
chagava ao local. Suas ordens eram para que ficassem de tocaia para
interceptar qualquer um que tentasse passar por ali.
Agora
não havia mais escapatória. A essa altura os soldados do morro já
haviam escondido as drogas da boca e as armas e estavam se abrigando
em esconderijos improvisados como caixas d’água e as casas de
parentes. Os policiais continuaram a operação durante três horas
invadindo as casas e procurando pelo chefe do trafico. Eram seis
horas da tarde quando o coturno de um soldado encontrou a porta
correta. A porta de madeira se soltou das dobradiças enferrujadas e
veio abaixo com um estalido. Os policiais adentraram apontando as
armas e Flavio estava sentado no sofá fungando e limpando o nariz.
Sobre a mesa a sua frente havia uma enorme carreira de cocaína.
Os
homens amarraram-no em uma cadeira de madeira capenga, os braços
para trás presos em amarras de plástico. Na primeira meia hora
recebeu socos e pontapés apenas enquanto tentava esconder o que
sabia dos homens de farda. Eram milicianos corruptos. Os mesmos
homens que ate a semana passada traziam-lhe armas e recebiam vultosas
quantias em dinheiro vivo. O capitão Bernardo Villas-boas era o
chefe ali. Um homem perverso que Flavio aprendera a temer com
pouquíssimo tempo de convivência. Observou-o acender um cigarro e
aspirar a fumaça sofregamente. O capitão olhou-o de cima com um ar
que Flavio interpretou como falsa tranquilidade.
–
O comandante esta furioso com essa região sabia Flavio? – disse o
capitão soprando a fumaça para o alto. – Eu tentei te proteger
enquanto foi possível, mas seus erros recorrentes me forçaram a dar
um basta nessa situação. Preciso saber quem mais estava coletando
dinheiro nessa região.
Flavio
sentiu um suor frio descer por sua espinha espalhando o medo por todo
o seu corpo.
-
Eu juro que não sei do que esta falando, Bernardo. Aqui a gente só
corre com você tá ligado?
-
Escute aqui seu drogado de merda – esbravejou Bernardo movendo seu
a rosto a menos de um palmo do de Flavio. -, eu estou cansado. Não
quero saber de joguinhos idiotas. Só vou perguntar mais uma vez: COM
QUEM MAIS VOCE ESTA TRABALHANDO?
O
silêncio que se seguiu foi angustiante. Naquele momento o traficante
percebeu que estava morto.
Os
homens fardados quebraram o momento de apreensão agindo fria e
coordenadamente. Um deles trouxe um alicate e outro pegou gazes e
sedativos na viatura. A tortura se revelou pragmática e elaborada.
Primeiro deceparam o dedo mínimo e repetiram a pergunta. Quando
Flavio mostrou resistência em responder outro dedo foi cortado e a
pergunta se repetiu nove vezes ate que todos os dedos das mãos
haviam sido arrancados. Um sargento fora incumbido de estancar o
sangue a fim de evitar um desmaio e fizera bem seu papel sem, contudo
privar o interrogado da dor excruciante.
O
próximo passo do método de Bernardo foi um pouco mais grosseiro. O
capitão do 26° batalhão pediu que um dos seus subordinados
apanhasse uma marreta que estava na viatura. A pergunta fatídica foi
feita mais uma vez e no segundo de silêncio que a precedeu a marreta
desceu como uma bomba e explodiu em seu joelho esquerdo. Os ossos
foram imediatamente triturados. A fratura não chegou a ficar
exposta, mas a violência do choque não permitiria que ele voltasse
a andar sem sequelas, claro, em caso de sobrevivência. Seus gritos
foram ouvidos a dois quarteirões de distância, mas nenhuma
testemunha se exporia a denuncia-los. Em todo caso o que poderiam
fazer, conjeturou o capitão, chamar a policia?
-
Me dê o nome – berrou Bernardo.
A torneira enferrujada
pingando na pia de louça branca da cozinha do casebre parecia uma
sucessão de explosões agora. O corpo fragilizado de Flavio estava
no limite. Era como se a dor ameaçasse jamais abandonar seu corpo.
Cada segundo parecia demorar uma verdadeira eternidade enquanto ele
rezava em silencio para que seu suplicio encontrasse um fim, mesmo
que na morte. Flavio respirava com dificuldade puxando o ar com
carência e soprando em intervalos regulares. Seu organismo tentava
equilibrar a dor despejando adrenalina em seu sangue para que pudesse
tentar qualquer reação, mas ele fora amarrado com pericia. Sua
esperança, que passava gradativamente de arranhada para trincada,
finalmente foi espatifada com a segunda marretada. Sua tíbia se
projetou para fora da perna numa visão assustadora. Dessa vez os
gritos não aconteceram de imediato. Flavio pareceu contemplar por um
momento a imagem estarrecedora do osso exposto e depois foi inundado
por uma dor lancinante que pareceu subir de seus pés ate sua cabeça.
O grito soou como um urro de ódio vindo direto do inferno. O sangue
escorreu profusamente da ferida aberta na carne e por segundos os
soldados não sabiam o que fazer.
- Eu con... Eu conto! – esganiçou Flavio. – Eu juro... eu conto!
Bernardo
aproximou-se.
-
Então fale – disse o capitão. – Fale pra mim e a dor vai parar.
Eu juro.
-
O delegado Mendonça. – Disse Flavio em meio à dor. A voz saía
embargada pelo sofrimento. – Ele tava tentando dominar essa região.
Eu não queria, mas ele não é o tipo de pessoa pra quem se diz não.
Eu juro que não tava te traindo. A gente tava fazendo a correria pra
pagar vocês. Eu pensei que cês tava correndo lado a lado, mano. Eu
juro por Deus.
O
capitão deu um longo suspiro e virou as costas. A situação estava
ficando mais complicada do que ele previra. Decidiu que eles teriam
uma conversa com o Delegado Mendonça. Mas não seria uma conversa
tão amigável quanto a que tinham acabado de ter com Flavio.
por JORGE GUERRA
Vão pela sombra, Equipe Eutanásia.
0 comentários:
Postar um comentário
Não serão aceitos comentários com conteúdo: racista, homofóbico, preconceituoso, maldoso, ou de qualquer índole duvidosa que possam a infringir ou ferir a moral de qualquer um.
Se por acaso o comentário é sobre alguma duvida com relação a postagem, tenha CERTEZA de que está duvida não esteja transcrita na postagem. Ficaremos contentes em tentar responde-lá.
Todas as afirmações contidas nos comentários são de responsabilidade do comentador, o blog Eutanásia Mental, não tem obrigação nenhuma sobre qualquer ato ofensivo nos comentários.
Tudo bem errar uma palavra ou outra, esquecer de algum acento também esta beleza. Agora se escrever tudo errado e não ser possível entender um nada, o comentário não será liberado.
Obrigado pela atenção. Comente e faça um blogueiro feliz :-)