Era um dia frio de inverno.
O frio nas ruas paulistas gelava os ossos e as folhas das arvores eram
arrancadas pela força do vento. A jaqueta grossa de couro fazia bem seu papel,
mas Rodolfo ainda podia sentir a fúria gélida da noite. No entanto nem o mais
rigoroso inverno podia competir em frieza com a personalidade sombria de
Rodolfo. O Zumbido. Quando o zumbido
começava não havia outro caminho a seguir a não ser o da violência. Somente o
sangue derramado fazia o zumbido parar. E o zumbido estava forte agora. Sua
cabeça chegava a latejar com o som estridente dentro do crânio, corroendo-o,
inflamando-o, instigando-o.
Abriu o portão com a primeira chave do molho e não se
preocupou em tranca-lo novamente. Precisava encontrar Ana, sua esposa. A sala
estava impecavelmente limpa e organizada, mas também vazia. Ana devia estar na
cozinha. Ele cambaleou com as mãos na cabeça em direção a cozinha. Ela só podia
estar preparando o jantar. Bacalhau com batatas se tivesse sorte.
O zumbido estava excruciante agora. Talvez a dor mais
terrível que enfrentara desde que o zumbido começara anos atrás. Massageou as
têmporas numa tentativa inútil de amenizar a dor aguda. Inferno. Chegou à cozinha quase sem forças. Ana estava de costas
preparando o peixe numa panela chafurdando de gordura. No forno do fogão a
torta de frango com catupiry que Rodolfo pedira estava quase pronta. Ana não
havia percebido ainda que ele chegara.
Bom.
Rodolfo
recuperou o equilíbrio e desferiu um soco devastador no lado direito de seu
rosto. O som ecoou pela cozinha como uma garrafa de champanhe sendo aberta. Um
breve estampido grave e seco. Ana caiu semiconsciente nos ladrilhos de
porcelanato. Retorcendo-se de dor sentiu o sangue quente descer por seu rosto
espirrando em jorros da boca entreaberta. Ana percebeu imediatamente que
Rodolfo estava tendo outro de seus ataques repentinos de fúria.
O
homem andou vagarosamente pela cozinha se aproximando do corpo caído de sua
amada. Ela tentava se levantar, mas era inútil. A dor intensa a desorientava.
Apoiou-se nos pés da mesa de mogno e tentou se erguer.
Rodolfo
gargalhou quando seu pé direito encontrou o rosto de Ana fraturando a mandíbula
e lançando no crânio um choque de dor lancinante. O corpo cineticamente
energizado pendeu para trás e desabou. Houve um momento de inércia, mas depois
Ana começou a chorar timidamente.
O
zumbido havia diminuído consideravelmente agora. Rodolfo sentiu que sua cabeça
não estava mais latejando como antes. Mas não podia parar agora. Tinha que
satisfazer completamente o zumbido antes.
Aquele
homem era um demônio. Ana sabia disso a mais de um ano. Rodolfo era carinhoso
durante uma parte substancial do tempo, entretanto esporadicamente parecia ser
possuído por alguma entidade maligna. Ficava violento e irascível. Quando isso
acontecia ela sabia que não havia argumentação que pudesse demovê-lo da tarefa
de espancá-la. Já fazia algum tempo que isso acontecera pela ultima vez.
Chegara até a nutrir uma inocente esperança de que aquilo não voltaria a
ocorrer. Uma ilusão que parecia infante agora.
O
demônio-homem fechou as mãos enormes em um tufo de seu cabelo escovado
puxando-o e arrebentando a raiz, rasgando o couro cabeludo. Uma dor terrível
tingiu o mundo de preto por um segundo interminável. Foi quando o punho fechado
de Rodolfo a atingiu nas costelas trincando o osso, ribombando na caixa
torácica e expulsando o ar dos pulmões. O demônio desferiu outro soco. No terceiro
sua costela cedeu e perfurou o intestino levemente. Aquela seria a origem da infecção
que a mataria no futuro.
E
então o zumbido cessou.
Rodolfo
ficou de pé e apreciou o silêncio, a dor de cabeça diminuindo paulatinamente.
Sorrindo deu as costas para Ana e caminhou ate a pia de mármore. Abriu a
torneira e levou a água com as mãos em concha até o rosto.
No
chão, Ana começou a se levantar lentamente enquanto as costelas fraturadas
arranhavam dolorosamente a carne. Aquilo tinha que parar. A dor era aterradora
mas não se comparava com a intensidade do ódio cego que sentia agora. Aquele
não fora um evento isolado. Fora apenas mais uma agressão sem sentido após uma
miríade de outras. E aquilo precisava parar.
Ela
estava cansada dos hematomas na pele. Cansada das inúmeras feridas no corpo.
Cansada das incontáveis fraturas. Cansada da carne dilacerada. Das dores no
meio da noite. Da humilhação constante. De escolher cuidadosamente as palavras.
De ouvir as desculpas desprovidas de sinceridade. Aquilo precisava parar.
Precisava parar agora.
A
frigideira de aço inox chiava no fogão de quatro bocas. O peixe que preparava
para o jantar já passara a muito do ponto ideal de fritura.
– O
que tem para o jantar? – perguntou Rodolfo.
Ana
não premeditou nada. Seus movimentos não foram coordenados e sequer refletidos.
Pegou a frigideira pelo cabo e brandiu na direção de um surpreso Rodolfo. O
óleo fervente voou no ar e uma parte substancial atingiu seu rosto crepitando
em sua pele e destruindo a epiderme. Ele tentou gritar, mas estava sem
ar e o som que saiu foi um resfolegar de angustia.
Enquanto
o marido rolava no chão, Ana se apoderou da faca de cozinha que repousava sobre
a mesa. Envolveu-a com força entre seus dedos frágeis e desferiu um único golpe
na nuca de Rodolfo. A ponta afiada da faca saiu pela boca perfurando o lábio
superior. A lesão na medula causou morte imediata rompendo as vértebras e lesionando o tecido nervoso.
O
forno que preparava a torta fez plim.
por Jorge Guerra
Vão pela sombra, Equipe Eutanásia.
Bem, o cabrão não volta a bater mais nela...
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