Anatomia da Tragédia #03

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O ar está ficando úmido novamente. Olho para o céu ligeiramente salpicado de nuvens enegrecidas e espero pela chuva. Talvez a torrente de agua vindoura seja capaz de limpar a podridão que toma conta desse lugar nefasto. A velha sensação de impotência e o resquício de esperança que abraça meu coração despedaçado me alerta para que eu diminua as expectativas. O desejo de mudar, às vezes, afeta severamente nosso julgamento e nos trás o dissabor da decepção. Essa sensação de queda simbólica que enterra o espirito e faz morrer a vontade já me é bastante familiar. Nada ao meu redor resistiu à agrura do destino.



Minha família nunca se diferenciou muito das inúmeras outras famílias africanas que aqui residiam. Nosso único motivo de orgulho era a fazenda que herdáramos de nossos avos paternos. Criávamos galinhas, cavalos, gado e possuíamos cinquenta metros quadrados de terra cultivável que garantiam nosso sustento e os negócios da família. A região nunca foi rica, mas tínhamos consciência de que estávamos numa situação muito melhor que a maioria dos africanos. Mas as disputas territoriais entre gangues de narcotraficantes nunca deixou de ser um problema. As disputas territoriais entre as distintas etnias pintava a região de sangue com regularidade assombrosa. Mas a morte democrática que tomou conta desse lugar levou a todos. Brancos e negros, ricos e pobres, cristãos e muçulmanos, todos obliterados pela força diabólica da natureza. Os corpos ainda fedem, a decomposição avançada nem sequer me deixa dormir. Corriqueiramente me pego relembrando da noite trágica em que minha vida mudou subitamente.

O vírus demoníaco viera das profundezas da floresta tropical. Fora trazido, segundo os cientistas brancos, através do morcego e contraído através do consumo da carne desse animal. A carne outrora saborosa se tornou nossa queda inevitável. Antes que eu pudesse perceber a doença diabólica já infestara todo o vilarejo, destruindo quase todas as famílias. Os europeus brancos que vieram nos ajudar não ficaram mais do que dois meses. A epidemia se tornara incontrolável e eles próprios estavam sendo infectados mesmo com as precauções que tomavam. Os representantes da indústria farmacêutica já tinham cumprido sua missão de “caridade”: coletar dados sobre a doença e testar vacinas que somente seriam usadas no “mundo civilizado”. Novamente não passamos de cobaias de laboratório.

Foi então que descobri que esse vírus é algo especial. Não se trata de algo conhecido como insistem em afirmar as autoridades internacionais. É um vírus diferente. Tem características únicas e parece ter me ignorado completamente. Nunca tomei qualquer tipo de cuidado para não ser infectado, no entanto fiquei imune a seus efeitos catastróficos. Toda a minha família foi destruída. A peste levou a todos e poupou a mim.

Por qual razão?

Os motivos talvez permaneçam ocultos para sempre. Mas eu tenho um palpite.

Durante décadas eu convivi com a brutalidade das gangues de narcotraficantes e guerrilheiros que assolam as terras de Guiné. As execuções sumárias de inocentes, os escalpelamentos, a imolação de mulheres cristãs, as decapitações de delatores, Os mutilados pelos ataques constantes, as crianças sequestradas para integrar a guerrilha a força, Os desaparecidos que tinha seus órgãos roubados para o mercado negro europeu, as chacinas promovidas para testar as armas contrabandeadas, as mulheres estupradas pelo poder paralelo da guerrilha, os julgamentos arbitrários ignorados pelo governo e pela imprensa internacional, as garotinhas roubadas e traficadas para o mercado sexual asiático, o vulto nefando das drogas que corroem a juventude, todas as atrocidades possíveis de se imaginar e algumas outras que não passam pela cabeça dos puros, me foram corriqueiras desde minha infância. 

E agora tudo acabou. A maldade morre junto com seu principal meio de ação.

O vírus diabólico descortina diante de meus olhos a verdade que sempre me recusei a enxergar. A doença que nos dizimou não passa de um anticorpo que está tentando a todo custo eliminar a verdadeira doença que varre o planeta: o homem.

por JORGE GUERRA

Vão pela sombra, Equipe Eutanásia.  

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Um comentário:

  1. Oi.
    Fiquei um tempo sem ler os posts daqui, mas agora voltei e encontrei um texto incrível! *-*
    Parabens. O texto esta incrivel! ^^

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