Anatomia da Tragedia - #01

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Falarei do inenarrável horror que se apodera de nossos corações, deixando em destroços nossa natureza de apego à vida, quando uma tragédia muda para sempre nosso horizonte de esperança. A tragédia nunca é anunciada, mas acontece. E acontece quando esquecemos que somos frágeis. Como a brisa que põe em pedaços um castelo de cartas, a catástrofe nos encontra na ironia amarga da ilusão humana...



Sobrevoando o oceano atlântico, 04:39 hs.

Lilian sentiu um solavanco e despertou surpresa. Demorou alguns segundos para perceber o que estava acontecendo, naquele momento de confusão morfética que atinge quem acaba de sair das profundezas do sono. Recompôs-se ao perceber que o rapaz ao seu lado a olhava com estranheza. Devia ter roncado durante o cochilo. Lilian sabia que essa era uma característica (ou um defeito) que a acompanhava desde sempre. Consultou o relógio e percebeu que em menos de duas horas estariam em Dubai, seu destino final. Estava ansiosa para encerrar logo as negociações com os sheiks mimados que teria de bajular. Aquela viagem havia surgido de maneira inesperada durante seu dia de folga. Lilian já havia feito planos para passar o dia com seus filhos e marido quando recebera a ligação desesperada de seu superior imediato. Pochmann, seu chefe, havia implorado para que ela fizesse essa viagem, afinal ela era a única capaz de substituir Nelson, o engenheiro chefe. Havia acumulado conhecimento especifico suficiente sobre o projeto da perfuratriz baseada em titânio justamente para ter uma oportunidade como aquela. Agora poderia sonhar com algo mais compatível com suas ambições dentro da empresa.

O Boing 777 mantinha a trajetória retilínea no céu escuro enquanto a garçonete desfilava pelo corredor oferecendo a refeição (“RAÇÃO!”, pensou Lilian) balanceada que a companhia costumava oferecer com dois quartos do trajeto concluídos. Lilian recusou elegantemente a geleia e a barra de cereais enquanto pensava na pão-durice de sua empresa que nem sequer havia comprado uma passagem na classe executiva. Na executiva os lanches eram bem mais confiáveis!

- Allah Akbhar!

O grito deixou Lilian gelada. Um medo paralisador e irracional se apoderou dela. Moveu-se desconfortavelmente na poltrona procurando a pessoa que proferira aquele grito de guerra aterrador. Foi então que Lilian viu. O homem que dissera os vocábulos malditos estava de pé no estreito corredor e olhava fixamente para o nada. Os passageiros e tripulantes agora observavam atônitos, como sua plateia; ele, a estrela do espetáculo. Sua barba estava suja e ele carregava na face uma expressão de ódio e desapego à vida. O olhar duro e penetrante fitava a cabine do piloto, mas parecia olhar sem ver. O homem de roupas surradas e aparência molambenta não parecia preso ao mesmo tecido de realidade dos demais. Carregava também em seu semblante uma loucura irrecuperável. Estava decidido a fazer algo que a Razão condenava e o próprio instinto de sobrevivência tentava a todo custo bloquear. 

Um alvoroço repentino tomava conta dos passageiros. Por um instante houve inercia, mas em seguida todos murmuravam assustados. Foi quando um homem desafivelou o cinto de segurança e se levantou aproximando-se.

- Allah Akbhar!

Alá não ouviria aqueles gritos e o que se seguiu depois não foi obra do Todo Poderoso. O homem acionou o detonador na palma da mão e cinco quilos dos saches de explosivo Semtex amarrados em seus tornozelos se converteram em uma grande bola de fogo. Os passageiros num raio de dez metros se converteram em fragmentos humanos de ossos e pedacinhos de carne. Lilian sentiu um tranco forte e em seguida ficou sem ar. Tudo começou a rodar e então ela percebeu que a estrutura da aeronave se partira em duas partes e sua metade girava no ar a cinco mil pés de altura despejando pequenos estilhaços de metal em todas partes causando cortes em toda a extensão de seu corpo. Não teve sequer tempo de pensar na família quando uma turbina de seiscentos quilos explodiu do seu lado reduzindo seu corpo esbelto a uma pequena chuva de sangue na vastidão do oceano.

por JORGE GUERRA

Vão pela sombra, Equipe Eutanásia.    

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